É como se aquele sábado tivesse sido ontem

Flamengo me ajuda a te ajudar
7 min readJun 23, 2022

É a noite do dia 21 de dezembro de 2019. Você acabou de chegar em casa, vindo do churrasco onde assistiu com seus amigos o Flamengo perder por 1x0 para o Liverpool. O clima é de frustração, mas o fato de que o seu time chegou tão perto de vencer um dos principais clubes da Europa, depois de um ano incrível com título da Libertadores e do Brasileirão, te faz entrar no chuveiro com a sensação de que os próximos anos podem ser tão bons ou melhores do que esse.

Enquanto se seca você ouve um som esquisito vindo da cozinha, uma espécie de zumbido, mas imagina que seja coisa dos vizinhos. É só quando sai do banheiro que você vê o facho de luz e percebe que tem uma pessoa mexendo na sua geladeira. Você estica a mão pra pegar um cabo de vassoura mas a pessoa se vira sorrindo pra você, as duas mãos abertas levantadas ao lado do corpo como que sinalizando que veio em paz. Você ainda ergue o pedaço de madeira acima da cabeça até reconhecer uma coisa esquisita naquele sorriso meio triste: ele é o seu sorriso.

Sim, aquela pessoa é você. Ou ao menos alguém muito parecido com você. O cabelo é o mesmo, apenas um pouco mais grisalho, os olhos são iguais, apenas um pouco mais tristes, a roupa é idêntica, ainda que a camisa rubro-negra dele pareça um pouco mais amassada. Você percebe o rosto um pouco mais cheio de vincos e linhas quando ele finalmente abre a boca pra dizer “então, irmão, eu vim do futuro e queria te dar um toque aí”.

Ele puxa um banco, se senta de frente pra você e faz um gesto pra que você se sente também. Você, se perguntando se realmente bebeu tanto assim, se senta e olha pra ele, que abriu uma das suas cervejas e bebe devagar. “Futuro? Como assim do futuro?”. Ele faz um movimento que cabeça que você reconhece imediatamente, porque é o mesmo que você faz quando alguém tá gastando muito tempo na parte mais chata da história. “O importante não é o como, mas sim o por que”, ele diz, te olhando nos olhos. Vocês dois riem. “Tu ensaiou essa, né, filho da puta?”, você diz, e ele fala “Ficou pica, vai, admite”. Você admite que ficou pica e ele agora te dá uma cerveja também.

“Mas por que tu veio do futuro então?”. Ele dá um gole longo na cerveja, que acaba com a latinha toda, e diz “Então, é uma coisa muito importante e eu preciso que tu ouça com muita atenção”. “Porra, é o fim do mundo? Alguém morreu? Vírus mortal? Invasão alienígena?”, tu pergunta, cada vez mais preocupado com o rumo dessa conversa. “Então, uma dessas coisas aí acontece sim, mas eu vim falar é do Flamengo”, ele diz, sombrio, abrindo outra latinha.

Você automaticamente sorri. “O mengão? Porra, então é coisa boa, porque esse time tá voando né. Com Jorge Jesus, Gabigol, Gerson, Arrasca, ninguém segura essa porra não. Ganhamos mais quantas Libertas, hein? De quando tu veio a gente já ganhou outro mundial?”. Ele te olha com o que parece ser um misto de pena e solidariedade. “Então, na verdade o que eu quero te dizer é pra aproveitar esse fim de ano, aproveitar esse momento, aproveitar esse Flamengo, porque ele não vai durar”.

Sua primeira reação é imaginar se você não tem um irmão gêmeo que foi dado pra adoção e bateu a cabeça, porque nada disso faz sentido. Viagem no tempo é uma coisa, mas o Flamengo de 2019 não durar? É o time mais forte do Brasil, é um dos times mais fortes do mundo, é a equipe que os caras na televisão acusam de estar se tornando o novo Bayern, porque vai deixar o futebol brasileiro até sem graça. Como assim, “não vai durar”?

Ele te olha como se soubesse exatamente qual seria a sua reação. “Eu sei, parece impossível, mas é a verdade”. Percebendo que você segue sem acreditar, ele decide se explicar melhor. “Primeiro, o Jorge Jesus vai sair”. Isso te surpreende, mas nem tanto, já que o velho sempre deu essa pinta de que voltaria pra Europa assim que pudesse. “Ok, mas e daí? O homem é foda mas não é o único técnico do mundo pro Flamengo, né? Com certeza a gente consegue arrumar outro”. Mas antes que você termine a frase ele já está fazendo sinal de negativo com a cabeça.

“Não consegue não, irmão, apenas não consegue. É como se o Jorge Jesus fosse literalmente o único técnico do mundo, num nível que o homem vai pedir as contas e anos depois a galera ainda vai estar fazendo campanha pra ele voltar. Vai ser até um pouco constrangedor, eu já te aviso, fica preparado.”

“Ok, mas e o time? A gente tem um puta time foda, vai? Era pra qualquer um conseguir treinar essa galera”. Você é surpreendido com um tapão de mão aberta na cabeça. “Tá falando que nem o Renato Gaúcho falava antes de ser contratado e rodar”. “Renato Gaúcho?”. “Isso, Renato Gaúcho, veio depois do Rogério Ceni”. “Rogério Ceni? O Jesus saiu e a gente contratou o Ceni?”. “Não, a gente contratou o Domenec Torrent”. “Caralho, o que é um…domeq corrente?”. “Tu não quer saber, sério”.

O silêncio paira na cozinha enquanto ele abre o que, se tu não perdeu as contas, já é a quarta latinha. “Mas e quem saiu então?”. “Gerson saiu”. “Pô, Gérson deve fazer falta…Veio quem?”. “Veio um belga, que deu um gol pro Palmeiras na final da Libertadores”. “Opa, então tamos chegando direto em final, isso é bom, não?”. “Quando tu assistir esse jogo daqui a dois anos tu me fala se foi bom, otário”. Tu não é agressivo assim, então pra ele estar desse jeito é que a situação é chata mesmo.

“Quem mais saiu?”. “Mari saiu, e aí veio o maldito Léo Pereira”. “Léo Pereira, o zagueiro do Atlético Paranaense? Mas ele parece bom, não?”. Nessa hora você toma o segundo tapa na cabeça, bem mais forte que o outro. “Quando que alguma coisa boa pra sua vida veio do Paraná, ô animal?”. Tu franze a testa mas é obrigado a concordar. “Gabigol deve ter saído também, né? Esse eu sabia que ia sair”. “Não, Gabi ficou”. “Então pelo menos ainda tamos fazendo gol pra caralho”. “Na verdade o Gabigol agora não faz mais gol, ele fica ali na intermediária, carimbando a bola do lado dos volantes, é bem esquisito, sabe”.

“Mas então a gente não ganha mais nada? Assim, acabou e pronto?”. “Ah, não, a gente ainda ganha umas Recopas, Supercopas, um Carioca ali, teve até um Brasileiro”. “Pô, então não é tão ruim, vai? A gente deve estar brigando por tudo, não ganhar acontece”.

Nessa hora você tem a sensação de que ele começou a lacrimejar. “Tu lembra do Flamengo de 2017, não lembra?”. “Tu tá falando esquema Rueda?”. “Não, tô falando esquema Zé Ricardo, só que treinado pelo Dorival Junior”. “Não pode ser, cara, não pode ter ficado assim. A gente virou um time comum então? Posse de bola sem criar nada e depois tomando gol sempre que os caras atacam?”. A dor no olhar dele e a maneira como ele abriu a sétima lata de cerveja te dizem que sim. Enquanto o som de zumbido começa a ocupar novamente a cozinha ele avisa que esse é o sinal de que ele precisa ir. “Por isso que eu te falei, aproveita bem esse momento que você tá vivendo agora”.

“Pô, mas é só isso? Não tem nada de bom pra me contar não? Tem nada dando certo pra gente, sei lá?”. Ele sorri o que parece ser um sorriso de verdade pela primeira vez desde que apareceu. “Vida pessoal, vida pessoal tá show”, ele diz, antes de desaparecer num clarão de luz.

O zumbido passa e você termina a cerveja que estava na sua mão. Tranquilo, você caminha pro quarto, sem nem mesmo olhar pra trás, pensando que nunca mais vai beber mais de 3 marcas diferentes no mesmo churrasco, porque isso com certeza te causou uma reação alérgica e te deu alucinação, que nem quando você pisou naquele ouriço em Cabo Frio no ensino médio. “Flamengo de 2019 virar um time do Zé Ricardo eu até consigo acreditar, mas eu tendo vida pessoal boa, aí só pode ser coisa da minha cabeça”. Antes de pegar no sono você ainda balbucia baixinho “Dorival Junior” e se benze, quase sem perceber.

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